Consciência Negra: Forças de Caráter como Pontes de Humanidade
- Dra Letícia Gonçalves
- 20 de nov.
- 5 min de leitura
Hoje, no Dia da Consciência Negra, escrevo não do lugar de quem vivencia o racismo na pele, mas do lugar de quem escolheu a medicina como missão de vida e a humanidade como território sagrado.
Escrevo como médica, e sobretudo como alguém que acredita que o consultório pode ser um espaço de encontro genuíno entre almas, independente da cor que as habita.
A reflexão que trago hoje nasce da intersecção entre dois mundos que habito: a Medicina do Estilo de Vida e a Psicologia Positiva.
Nessa encruzilhada de saberes, descobri que construir saúde plena vai muito além de prescrever dietas ou treinos. Saúde se tece com fios de conexão, propósito e com o cultivo intencional das nossas melhores qualidades : as forças de caráter que nos tornam plenamente humanos.
E é nesse terreno fértil que encontro a urgência de falar sobre concordância racial no atendimento médico.

O Abismo Invisível da Consulta
Sabemos que a concordância racial , quando paciente e médico compartilham a mesma raça, pode facilitar vínculos de confiança.
Há uma cumplicidade tácita, uma compreensão cultural que dispensa explicações.
Mas vivemos em um Brasil que é, simultaneamente, miscigenado e estruturalmente racista. Um país onde a maioria dos médicos é branca e a maioria da população que depende do SUS é negra.
Nesse desencontro cromático, como garantimos que o consultório não se torne mais um espaço de perpetuação de violências sutis?
Como transformamos a diferença em ponte, não em abismo?
A resposta que encontro está no exercício deliberado das nossas forças de caráter.
Elas são as ferramentas que temos para construir conexões autênticas onde a concordância racial não existe naturalmente.

Curiosidade: A Arte de Não Presumir
A primeira força que precisamos ativar é a curiosidade. Não a curiosidade superficial de quem coleciona informações, mas aquela curiosidade profunda que substitui o "eu sei como é" por um humilde "eu quero entender a sua realidade".
Um paciente negro traz para o consultório muito mais que sintomas físicos.
Traz o peso do estresse crônico do racismo cotidiano, a desconfiança histórica em sistemas que o falharam, as barreiras invisíveis de acesso que naturalizam a doença como destino.
Curiosidade é fazer perguntas melhores. É perguntar não apenas "qual é sua dor?", mas "o que mais dói além do que posso ver?".
É criar espaço para que histórias silenciadas possam finalmente encontrar escuta.
Perspectiva: Enxergar o Invisível
A força da perspectiva nos convida a analisar com olhar crítico e isento. Exige que reconheçamos o racismo como determinante social de saúde tão concreto quanto tabagismo ou sedentarismo.
Os números não mentem: hipertensão, diabetes, mortalidade materna, acesso precário a alimentos nutritivos, violência obstétrica – todas essas realidades têm cor no Brasil.
Ignorar este fato não é neutralidade médica; é cumplicidade disfarçada de ciência.
Usar nossa perspectiva crítica é incluir no diagnóstico não apenas a glicemia alterada, mas também o bairro onde mora, o tempo que gasta no transporte, as violências que sofre pelo caminho.
É entender que sintomas não existem no vácuo – eles habitam corpos que habitam contextos.
Coragem: O Desconforto Necessário
Há perguntas que exigem coragem para serem feitas. "Como você se sente ao ser atendida por mim, uma médica branca?" pode parecer arriscado, expor vulnerabilidade profissional, abrir portas para respostas que não sabemos lidar.
Mas é justamente aí que mora a bravura transformadora. Coragem não é ausência de medo é fazer o que precisa ser feito apesar do desconforto.
É reconhecer que nosso privilégio pode ser barreira, e que nomear isso não nos diminui; nos humaniza.
Coragem é também questionar protocolos padronizados que não consideram a diversidade de corpos e vivências. É ter a ousadia de adaptar, personalizar, co-criar planos terapêuticos que façam sentido para aquela vida específica.
Amor e Inteligência Social: O Alinhamento Empático
Na Psicologia Positiva, amor é a capacidade de genuinamente se importar com o outro. Inteligência social é a habilidade de perceber nuances emocionais, ler o não dito, sentir o que pulsa por baixo das palavras.
Juntas, essas forças criam o que chamo de "alinhamento empático". Mesmo sem compartilhar a mesma cor de pele, podemos nos sintonizar com a dor, a ansiedade, os medos e as esperanças que habitam aquele ser humano à minha frente.
Um olhar sustentado nos olhos. Um tom de voz que acolhe sem infantilizar. A validação dos sentimentos: "Imagino como isso deve ser exaustivo", "Faz sentido você se sentir assim". Esses gestos transcendem melanina – são universais porque são profundamente humanos.
Amor, no consultório, é lembrar que antes de ser meu paciente, você é gente.
E gente merece ser vista, ouvida, respeitada em sua integralidade.
Justiça e Equidade: Ser Agente Antirracista
Como líderes da saúde dos nossos pacientes, a força da justiça não pode ser opcional.
Ela nos convoca a sermos agentes ativos antirracistas dentro do consultório.
Isso significa combater vieses implícitos que subestimam a queixa de dor de pacientes negros. Significa não patologizar características físicas naturais (como o cabelo).
Significa considerar crenças culturais e práticas de cuidado ancestrais como válidas, não como folclore a ser superado pela "medicina séria".
Equidade não é tratar todos iguais : é reconhecer que desigualdades históricas exigem compensações presentes. É dar mais tempo de consulta para quem tem mais barreiras.
É facilitar acesso. É usar linguagem acessível. É garantir que meu consultório seja território seguro para todos os corpos.

A Construção de um Patrimônio de Saúde Diverso
Minha missão é contribuir para a construção de um patrimônio de saúde e para o florescimento humano da comunidade à qual pertenço. E essa comunidade, escolho intencionalmente que seja diversa.
Não posso mudar a cor da minha pele.
Mas posso – e devo – mudar minha postura, meu olhar, minha escuta.
Posso usar minhas forças de caráter para criar um espaço onde a cor da pele do meu paciente não seja barreira, mas sim mais um fio na trama complexa de sua história que preciso honrar para cuidar integralmente.
Posso transformar meu consultório em território de acolhimento, onde a diversidade não é apenas tolerada, mas celebrada como essencial para o florescimento da vida.
O Convite de Hoje
Neste Dia da Consciência Negra, convido cada profissional de saúde a fazer uma autoavaliação honesta:
Como tenho usado minha curiosidade? Minha coragem? Minha justiça? Estou promovendo um atendimento verdadeiramente humano e igualitário, ou estou perpetuando, mesmo sem intenção, estruturas de exclusão?
O consultório pode ser microcosmo de transformação social. Cada consulta, uma oportunidade de costurar pontes onde antes havia abismos.
Cada escuta atenta, um ato político de resistência ao apagamento.
Que nossas forças de caráter sejam pontes.
Que nossa medicina seja, de fato, para todos os corpos, todas as cores, todas as histórias. Que o florescimento humano que buscamos seja genuinamente coletivo – ou não será florescimento algum.
Porque saúde que exclui não é saúde. É privilégio disfarçado de ciência.
E nós podemos , devemos , fazer diferente.
Como disse Martin Luther King Jr., 'o que mais me preocupa é o silêncio dos bons'.

Letícia Gonçalves é esposa, mãe, escritora, fotógrafa, pintora e poetisa tem usado a psicologia positiva para imprimir vitalidade por onde passa. Mentora na MEVBrasil, membra da diretoria científica do Movimento Médicos Atletas, além de Co-autora Capítulo Alimentação do Livro Cardiologia do Estilo de Vida
Médica de Família e Coaching de Saúde e Estilo de Vida, com formação em Nutrologia e Psicologia Positiva.








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