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Foto do escritorLeonardo Spercoski

Miocardiopatia induzida por esteróides anabolizantes


Pessoal, quem lida com atletas amadores e pacientes clínicos em geral certamente já ouviu a seguinte frase: “Eu faço reposição hormonal com testosterona com orientação do meu médico. Ele faz o controle certinho.”.

Vamos dissecar essa frase?

Em primeiro lugar, reposição hormonal de testosterona deve ser feita apenas em pacientes que tem deficiência clínica e laboratorial desse hormônio. A maioria desses pacientes não tem deficiência, querem apenas suplementar para dar um “gás”. Infelizmente temos colegas médicos que além de prescrever de maneira inadequada, querem convencer os pacientes que os valores laboratoriais tradicionais estão errados e o ideal são valores bem acima dos recomendados.

Em segundo lugar, mesmo que o paciente que faça uso supra fisiológico de hormônios acompanhe com um médico, não existe “controle”, como se o médico fosse um ser supremo e somente pelo fato do paciente acompanhar com esses colegas fará com que nada de ruim ocorra com o paciente. Pura ilusão.

Fora outros efeitos colaterais (renal, hepático, psiquiátrico, hipertensão, dislipidemia, IAM, AVC, trombose, etc), estudos recentes mostram que os esteróides anabolizantes provocam cardiotoxicidade, a qual acarreta em desenvolvimento de insuficiência cardíaca. É sobre isso que vou descrever aqui no blog.

Relembrando fisiologia cardíaca, no que se refere ao ventrículo esquerdo,  o miocárdio tem fibras dispostas nas 3 direções: longitudinal, radial e circunferencial e se contrai de maneira organizada, sempre trabalhando mais na ponta, já que seus segmentos basais estão ligados ao tecido conjuntivo  do anel mitral. Em pessoas que fazem exercício de força (musculação, calistenia), em condições fisiológicas (sem uso de anabolizantes) ocorre uma hipertrofia concêntrica, ou seja, o músculo cardíaco aumenta de volume e a cavidade ventricular esquerda proporcionalmente fica um pouco menor. Essa hipertrofia é organizada ao nível microscópico,  o trabalho do miocárdio é harmônico e a função ventricular esquerda é normal. Tudo perfeito nesse caso.

Em pacientes que usam anabolizantes também ocorre hipertrofia concêntrica. Porém, essa hipertrofia não é organizada do ponto de vista microscópico. Os miócitos crescem de maneira caótica, desorganizada.  Por consequência, a contração miocárdica também se desorganiza e a função sistólica do ventrículo esquerdo vai se deteriorando com o passar do tempo, até desenvolver disfunção sistólica, terminando em insuficiência cardíaca (ICC).

O ecocardiograma  é o exame que usualmente detecta o problema. Pois bem, até poucos anos atrás, o diagnóstico de ICC por anabolizante era feito muito tardiamente, quando o coração já estava em falência, pois o ecocardiograma somente detectava a fração de ejeção. Mas muito antes de haver queda da fração de ejeção, o miocárdio já começa a apresentar sinais de disfunção e insuficiência.

 Na última década, houve o desenvolvimento e a compreensão da utilidade de um recurso ecocardiográfico chamado Strain. Resumidamente, Strain é a tradução de deformação. Esse recurso mede a velocidade de deformação do miocárdio. Essa velocidade é medida em todos os segmentos do músculo do VE (atualmente podemos fazer nos átrios e VD, mas isso não entrará no escopo do artigo).  Estudos iniciais mostraram que uma pessoa normal, sem qualquer patologia tem velocidade normal de Strain acima de 18. Esse é o valor do Strain global (média de todos os segmentos), sendo considerado fisiológico valores menores nas bases e maiores na ponta do VE.

Segue exemplo de normalidade:


Na imagem acima, exemplo de Ecocardiograma de um atleta amador de 38 anos, praticante de musculação 3x na semana e corrida também 3x na semana (20km semanais), sem comorbidades e sem uso de anabolizantes. Na foto inferior direita, nota-se um exame completamente normal, com Strain cardíaco global de 21,4 (média de todos os valores de Strain). A imagem inferior direita é um Bulls Eye, onde didaticamente de fora pra dentro vemos uma representação dos segmentos basais, médios e apicais do VE (os apicais são demonstrados bem no centro da imagem). Percebam que os valores (expressos em números dentro de cada segmento) são ascendentes da base (parte externa do círculo) para o ápice do VE.

 

Abaixo um exemplo de cardiotoxicidade por uso de anabolizante:


Na imagem acima, paciente de 28 anos, usando testosterona injetável (Cipionato) uma ampola semanal por cerca de 1 ano, com queixas de fadiga leve aos grandes esforços. Praticante de musculação cerca de 1hora e 30 por dia por 6 dias na semana. Sem outras comorbidades. Ecocardiograma basal mostrou hipertrofia concêntrica discreta e fração de ejeção de 55% (normal para o método >50%). Se ficássemos satisfeitos com o Eco convencional, não detectaríamos o problema. Mas usando técnicas avançadas de Strain, desmascaramos o problema. Note na foto inferior direita o Strain global foi de 10,6 (normal seria maior que 18, conforme já citado). Perceba que na imagem inferior direita (Bulls Eye) os valores de Strain estão reduzidos em todos os segmentos.  Esse achado configura disfunção sistólica do VE, sendo necessário além de aconselhamento ao paciente de faze-lo restaurar seu eixo hormonal natural e  iniciar tratamento cardiológico adequado para o problema.

Em resumo, atualmente usando técnicas avançadas de Ecocardiograma com uso de Strain, conseguimos observar todo o iceberg das consequências do uso de anabolizantes, não apenas a ponta desse iceberg como fazíamos antes. Lembrando que isso não é uma prevenção (a prevenção continua sendo não usar essas substâncias), mas sim um diagnóstico precoce das complicações, aumentando nossas chances de aconselhar e evitar um final trágico para nossos pacientes, algo que ainda ocorre com frequência no dia a dia.

 

 

Dr. Leonardo Spercoski Gonçalves

CRM-Pr 17802

Cardiologista (RQE 16600), médico do esporte (RQE 29008) e ecocardiografista do esporte (RQE 633).

Instagram: @drleonardospercoski

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