A Sabedoria que a Medicina Esqueceu de Ensinar
- Dra Letícia Gonçalves
- há 20 minutos
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Como médica de família, nutróloga e entusiasta da Medicina do Estilo de Vida, tenho observado ao longo dos anos como pequenas mudanças de perspectiva podem gerar transformações profundas na saúde dos meus pacientes.
Perspectiva: A Sabedoria que Habita os Paradoxos
Este fim de semana foi daqueles que marcam. Não apenas porque comemoramos o Dia do Médico, mas porque vivi experiências que teceram, de forma quase poética, o significado mais profundo do cuidar. Participei da imersão Fluir : um encontro de mulheres que trabalham com saúde, justamente em uma semana que começamos refletindo sobre Perspectiva e Sabedoria, e ontem celebramos a Segunda Corrida Virtual dos Médicos Atletas.
Três movimentos. Três perspectivas. Um mesmo convite: expandir.
O Ponto de Vista é Apenas a Vista de Um Ponto
No Laboratório de Forças, mergulhamos na força de caráter que mais me desafia e fascina: a Perspectiva, que é a capacidade de tolerar paradoxos sem a pressa neurótica de resolvê-los. É a força que consegue adentrar nas tensões de forma produtiva, habitando a interface do complexo sem simplificar prematuramente.
Como médica, somos treinadas no modo "executivo" , aquele sistema cerebral analítico, instrumental, focado em resolver problemas. "Como consertar isso?" é a pergunta que ecoa em nossa formação. Mas Anthony Jack nos apresenta algo revolucionário através da neurociência : existe outro sistema, o empático, que pergunta "como essa pessoa se sente? Como eu me sinto?".
E aqui está o paradoxo que a medicina contemporânea precisa abraçar: esses dois sistemas são mutuamente excludentes. Quando estou no modo analítico, minha empatia está literalmente desativada. E vice-versa.
A sabedoria não está em escolher um ou outro. Está em dançar entre eles, no ritmo do contexto.

Como Pisar naquele terreno da dor do outro?
Essa foi a pergunta que eu trouxe durante a nossa reunião. Como pisar na dor do outro - com pés que esmagam ou com pés suaves que permitem abertura e revelação?
Na Nutrologia, aprendi que cada organismo carrega sua própria sabedoria. Mas não basta reconhecer isso tecnicamente. É preciso criar um espaço onde essa sabedoria possa emergir. E isso exige mais do que protocolos : exige presença, paciência com ciclos não-lineares, e a coragem de não ter todas as respostas.
A Medicina que Reconhece o Que Falta Como Parte do Inteiro
Martha Nussbaum nos ensina que "a vida moral é uma atividade de percepção e resposta contextual, não de aplicação mecânica de regras". Isso ressoa com tudo que venho escrevendo sobre integridade expandida. Quando consigo alternar entre o olhar clínico e o olhar empático : sem culpa, sem pressa - crio um campo terapêutico onde o paciente pode se revelar por inteiro. Não apenas seus sintomas, mas suas múltiplas identidades: a mãe, a profissional, a filha, a pessoa que um dia foi e a que ainda pode ser.
Aprendi que perspectiva não é ter "a visão completa" - isso seria arrogância. É reconhecer a parcialidade de toda visão e a riqueza que emerge do encontro respeitoso entre diferentes pontos de vista. É dizer "até aqui é onde eu vi, tem muito mais depois da linha".
Fluir: Quando o Sol Aparece Depois da Chuva
Na imersão Fluir, entre mulheres que dedicam suas vidas ao cuidado, vivenciei uma cena que resume tudo: após a chuva intensa do sábado, o sol apareceu. Que metáfora perfeita para a sabedoria prática! Não negamos a chuva, não fugimos dela. Habitamos a tensão entre a tempestade e a claridade. Reconhecemos que somos ambas - a vulnerabilidade que se molha e a força que brilha.
Como profissionais de saúde, especialmente nós mulheres, carregamos essa dança constantemente.
Somos analíticas e empáticas, fortes e sensíveis, técnicas e intuitivas.
A rigidez é querer escolher apenas um lado.
A Corrida Como Metáfora da Perspectiva
Ontem, na segunda corrida virtual dos Médicos Atletas, celebro não apenas o movimento do corpo, mas essa capacidade de alternar perspectivas que venho cultivando.
Correr exige saber quando empurrar e quando acolher o ritmo que o corpo pede. É preciso ter a perspectiva da meta (analítico) sem perder a escuta do corpo no momento presente (empático). É honrar tanto o plano quanto a improvisação.
Igor Grossman, pesquisador da sabedoria, descobriu algo libertador: a sabedoria não vem com a idade, mas com a experiência reflexiva. Não é sobre acumular anos de prática, mas sobre o tempo de reflexão sobre essa prática.
Cada corrida, cada consulta, cada encontro com outras profissionais de saúde é um laboratório. O que importa não é apenas fazer, mas refletir sobre como fazemos.
De Volta ao Consultório: A Prática da Segunda-Feira
Segunda-feira chego para o encontro clínico diferente. Não porque aprendi novas técnicas (embora tenha aprendido muito), mas porque ampliei meu repertório de perspectivas.
Quando minha paciente chegar carregando culpa por não conseguir "fazer tudo certo", vou lembrar: será que ela precisa de mais uma nova intervenção ou de permissão para habitar o paradoxo de ser humana?
Quando me pegar ansiosa para "resolver logo" um caso complexo, vou perguntar: estou fazendo o caminho sem perceber as flores? Estou no modo executivo quando deveria estar no empático?
E quando me sentir insegura - porque a medicina é feita também de incertezas - vou sustentar a humildade de dizer: "Até aqui é onde eu vi. Vamos descobrir juntos o que há depois da linha".
O Que o Dia do Médico Me Ensinou Este Ano
Mais do que comemorar a profissão, este fim de semana me ensinou a celebrar a complexidade do cuidar.
Não preciso escolher entre ser médica técnica ou empática. Entre ser rigorosa ou acolhedora. Entre ter expertise ou habitar o lugar de aprendiz.
Como disse um colega no Laboratório, citando Mark Twain: "Para quem só tem martelo, todo problema parece um prego". Impossível ser marceneira de uma ferramenta só.
A perspectiva me convida a ser também o que eu ainda não sou. A reconhecer que onde quer que eu esteja, sou tanto o que manifesto quanto o que falta , e ambos são necessários para minha integridade como profissional e como ser humano.


Do Fluir ao Laboratório de Forças, da chuva ao sol, da reflexão à corrida - este fim de semana foi uma celebração da capacidade humana de expandir.
E enquanto corro, virtualmente conectada com médicos de todo o Brasil, carrego comigo não apenas a consciência do corpo em movimento, mas a gratidão por fazer parte de uma comunidade que está disposta a questionar, a crescer, a dançar entre diferentes formas de ver e cuidar.
Porque no fim, talvez a maior sabedoria seja essa: reconhecer que o ponto de vista é apenas a vista de um ponto. E que a beleza está em circular entre os pontos, sem pressa de encontrar o "certo", mas com a curiosidade genuína de descobrir o que cada ângulo revela.
Que assim sigamos: médicos, atletas, eternos aprendizes da arte de cuidar.

Letícia Gonçalves é esposa, mãe, escritora, fotógrafa, pintora e poetisa tem usado a psicologia positiva para imprimir vitalidade por onde passa. Mentora na MEVBrasil, membra da diretoria científica do Movimento Médicos Atletas, além de Co-autora Capítulo Alimentação do Livro Cardiologia do Estilo de Vida
Médica de Família e Coaching de Saúde e Estilo de Vida, com formação em Nutrologia e Psicologia Positiva.
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